Livro: A Via Crucis do Corpo — Clarice Lispector

Quan­do Álvaro Pacheco encomen­dou à Clarice Lispec­tor três histórias talvez nem imag­i­nasse o peri­go que cor­ria em faz­er um pedi­do desse a uma escrito­ra que sem­pre fora con­heci­da pelo seu impul­so — e pro­fun­di­dade — na nar­ra­ti­va. Mas por out­ro lado, o pedi­do de Pacheco deu origem à reunião de con­tos de A Via Cru­cis do Cor­po (Edi­to­ra Roc­co, 1998), um dos últi­mos tra­bal­hos da escrito­ra que fazia con­tos como se relatasse cenas de uma voyeur sagaz, que entende o ínti­mo da natureza humana.

Clarice deixa claro já no pre­fá­cio de A Via Cru­cis do Cor­po que talvez todas aque­las histórias ela mes­ma ten­ha vivi­do ou que, ain­da, sejam meras semel­hanças com a real­i­dade. Assim era a lit­er­atu­ra caóti­ca de Lispec­tor, um oscilar de real e fan­ta­sioso, sem soar ina­cred­itáv­el. O cor­po é o grande per­son­agem do livro, há uma lin­ha tênue que liga uma a uma das nar­ra­ti­vas e o cor­po é vis­to de um pris­ma, além de regras e moral­is­mos. A cada nar­ra­ti­va o leitor é apre­sen­ta­do a uma noção de cor­po difer­ente, a descober­ta desse instru­men­to que car­reg­amos é vivi­da das mais difer­entes maneiras, des­de da descober­ta da mas­tur­bação por uma mul­her na ter­ceira idade até a lib­er­tação — na min­ha visão, poéti­ca — das amar­ras do moral­is­mo de uma mul­her religiosa.

A auto­ra não poupa per­sonas em A Via Cru­cis do Cor­po, expõe out­ros e inclu­sive a si mes­ma. Em alguns dos con­tos temos a impressão que é a própria auto­ra está falan­do, nos rev­e­lando alguns seg­re­dos seus. Acred­i­to isso ser um dos trun­fos mais grandiosos na escri­ta dela, essa per­cepção do ser, do com­preen­der e dialog­ar os devaneios humanos como se ela fos­se a maior con­hece­do­ra da causa. 

Difer­ente do que fez, por exem­p­lo, em A Paixão segun­do G.H, em que nar­ra uma descober­ta em primeira pes­soa, cheia de nuances psi­cológi­cos, em A Via Cru­cis do Cor­po os per­son­agens são sem­pre con­tex­tu­al­iza­dos crian­do laços com o leitor. Todos con­hece­mos pes­soas que lem­brem algum per­son­agem de Clarice Lispec­tor, as vezes somos nós mes­mos recon­heci­dos no espel­ho que a escrito­ra con­seguia cri­ar com sua escrita.

A Via Cru­cis do Cor­po é uma ousa­dia pen­den­do para o eróti­co sem ser explici­ta. Éroti­co pela pureza em que o cor­po é per­son­agem de cada breve história que resul­ta num praz­er próprio. O cor­po é o instru­men­to e os per­son­agens nomea­d­os são somente por­ta­dores dele, se dan­do con­ta de sua existên­cia essen­cial. Um livro para rel­er, se encon­trar, se enten­der. Clarice é sem­pre auto-conhecimento.


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Dossiê Daniel Piza
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