Livro: Estórias Abensonhadas — Mia Couto

Estas estórias falam desse ter­ritório onde nos vamos refazen­do e vamos mol­han­do de esper­ança o ros­to da chu­va, água aben­son­ha­da. Desse ter­ritório onde todo homem é igual, assim: fin­gin­do que está, son­han­do que vai, inven­tan­do que vol­ta. (Pre­fá­cio de Estórias Abensonhadas)

Ten­ho uma grande con­vicção de que grandes leitores sem­pre foram grandes ouvintes de histórias orais, das vozes nas ruas, con­ver­sas de ônibus e qual­quer out­ro lugar. Ter essa sen­sív­el per­cepção quan­to ao mun­do me parece bas­tante per­ti­nente quan­do você lê livros como se estivesse ouvin­do uma série de boas histórias, assim como acon­tece com Estórias Aben­son­hadas (Com­pan­hia das Letras, 2012) , de Mia Couto.

É prati­ca­mente indis­pen­sáv­el a apre­sen­tação da figu­ra do escritor Moçam­bi­cano que comu­mente é colo­ca­do no hall dos grandes escritores fan­tás­ti­cos e inven­tivos. Assim como Gabriel Gar­cía Mar­quez, Guimarães Rosa e Manoel de Bar­ros, Mia Couto recria a real­i­dade ressaltan­do situ­ações com tons de magia. Nada é banal na vida dos per­son­agens que com­põem as suas nar­ra­ti­vas e essas fig­uras, com seu próprio por­tuguês e modo de se expres­sar, cir­cu­lam pelo tex­to dire­cio­nan­do o leitor.

Estórias Aben­son­hadas é um con­jun­to de con­tos e como sinal­iza­do na intro­dução, foram escritos num perío­do pós-guer­ras — em 1994, ano de lança­men­to do livro, fazia ape­nas dois anos que a Guer­ra Civ­il de Moçam­bique soma­da a Guer­ra da Inde­pên­den­cia que se arras­tou des­de os anos 60, havi­am ter­mi­na­do — e o livro é for­ma­do por con­tos onde fig­uras como o sangue e a guer­ra são ele­men­tos de histórias de recomeço e ilu­mi­nações, como se os per­son­agens estivessem apren­den­do a ver a luz nova­mente e assim recon­stru­in­do suas rotinas.

Mia Couto escreve com a lin­guagem dos son­hos, opera a palavra como um tra­bal­hador opera o seu mel­hor instru­men­to. E vai além, recria seu uso e funções provan­do que a lín­gua Por­tugue­sa se trans­mu­ta con­forme a sua geografia, é viva. E em Estórias Aben­son­hadas essa lín­gua gan­ha ares de esper­ança num ter­reno onde tudo pre­cisa de recon­strução e mes­mo que a morte este­ja pre­sente em boa parte dos con­tos, não há como escon­der a esper­ança de ir adiante.

Nas Águas do Tem­po, o con­to que abre o livro, o leitor é apre­sen­ta­dos à magia do rela­to e a importân­cia da figu­ra do avô, um sím­bo­lo do con­ta­dor de histórias. O avô per­mite que o neto veja além de um lado do rio em que ele o leva todos dias, pois os fan­tas­mas da guer­ra ain­da cir­cu­lam pela região e deve-se respeitá-los. Como se vê em vários out­ros con­tos, a pre­sença maciça da mitolo­gia da região rep­re­sen­ta­da por fig­uras e palavras próprias dá ordem do tom de oral­i­dade de Mia Couto.

No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para den­tro, ess­es que usamos para ver os son­hos. O que acon­tece, meu fil­ho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver ess­es out­ros que nos visi­tam. Os out­ros? sim, ess­es que nos ace­nam da out­ra margem. E assim lhes causamos uma total tris­teza. Eu levo-lhe lá nos pân­tanos para que você apren­da a ver. Não pos­so ser o últi­mo a ser vis­i­ta­do pelos panos. (p.13)

Em out­ros tex­tos como em O Cego Estre­lin­ho é a força da palavra que faz recri­ar ima­gens nun­ca vis­tas. Com uma grande sen­si­bil­i­dade os per­son­agens tem nomes muito sug­es­tivos como é o caso de Estre­lin­ho que, ori­en­ta­do pelas mãos de Gig­i­to é apre­sen­ta­do por um mun­do fan­tás­ti­co e pul­sante e quan­do este é man­da­do à guer­ra — mata­do­ra de esper­anças e cores — o cego pas­sa a ser ori­en­ta­do pela irmã, a Infe­lizmi­na que não vê nada demais no mun­do ali fora.

O erro da pes­soa é pen­sar que os silên­cios são todos iguais. Enquan­to não: há dis­tin­tas qual­i­dades de silên­cio. É assim o escuro, este nada apa­ga­do que estes meus olhos tocam: cada um é um, des­b­o­ta­do à sua maneira. Entende, mano Gig­i­to? (p.23)

Boa parte dos per­son­agens de Estórias Aben­son­hadas tem seus pares que con­tra­bal­ançam a fal­ta de esper­ança, como a capa da edição brasileira sug­ere, duas cadeiras frente a frente ven­do o sol nascer. Duas pes­soas são capazes de ini­ciar uma guer­ra como sinal­iza A Guer­ra dos Pal­haços onde dois pal­haços brin­cantes, numa acalo­ra­da dis­cussão, começam uma guer­ra entre os espec­ta­dores que ten­tam inter­pre­tar a per­for­mance. Um tex­to cur­to mas imen­so de ale­go­rias sobre a estu­pid­ez de um conflito.

Com romances pre­mi­a­dos e igual­mente inven­tivos, Mia Couto demon­stra maior ver­sa­til­i­dade ain­da em con­tos ou crôni­cas porque são relatos cur­tos e boa parte deles pub­li­ca­do no jor­nal por­tuguês Públi­co. O fato de estarem pre­sentes em jor­nal, além de dar uma grande vis­i­bil­i­dade, dialo­ga muito inti­ma­mente com o leitor, mes­mo aque­le desacos­tu­ma­do com o seu tom fan­tás­ti­co. Creio que um dos fatos cru­ci­ais do escritor con­seguir cri­ar essa relação de intim­i­dade é a sua profis­são de biól­o­go que per­mite que ele seja inven­ti­vo unin­do o ser humano e sua relação com o espaço, ambi­ente e o lugar.

Estórias Aben­son­hadas ultra­pas­sa qual­quer relação sim­plória de leitor e obra, é como se olhásse­mos através de uma janela e con­hecesse­mos ess­es per­son­agens como nos­sos viz­in­hos, ami­gos e par­entes. São histórias fan­tás­ti­cas escritas com a liber­dade de um con­ta­dor de histórias, pois além de Mia não se pren­der à con­veções lin­guís­ti­cas, ele dialo­ga de muito per­to com as nos­sas próprias raízes, é a lin­guagem uni­ver­sal dos sonhos.


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