A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói | Livro

Obra de autor rus­so abor­da a mor­tal­i­dade humana e o medo que faz cair o véu da ignorância

A_morte_de_Ivan_Ilitch-capaPre­sença fan­tas­magóri­ca, som­bria, temi­da. Uma car­i­catu­ra de dentes amare­los e ros­to esquáli­do, que vaga pelas noites de tem­pes­tade. Vul­to den­tro de um quar­to escuro, com forte aro­ma de velas mis­tu­ra­do com cipreste e crisân­te­mo, avoluman­do lágri­mas ind­is­farçáveis. Não impor­ta a imagem ou descrição atribuí­da, a morte é uma das obsessões do homem tan­to quan­to a von­tade de saber sobre o iní­cio da existên­cia e seu elo perdido.

No entan­to, falar sobre o assun­to ain­da con­sti­tui tabu para diver­sas sociedades, rep­re­sen­tan­do con­teú­do a ser evi­ta­do para que a ale­gria de viv­er não se dis­sol­va em ques­tion­a­men­tos sem retorno. Porém, cam­in­han­do do lado opos­to dessa ideia dom­i­nante, o escritor rus­so Liev Niko­laievitch Tol­stói não tin­ha o menor receio em tratar sobre temas que envolvessem a câmara mor­tuária e o pon­to final da exper­iên­cia humana. Nasci­do na sun­tu­osa residên­cia de Yas­naya-Polyana em 1828, o conde Liev Tol­stói teve pen­sa­men­tos con­trários aos dos mem­bros de sua posição social, ques­tio­nan­do-se durante toda a vida sobre a ide­olo­gia que man­tém a estrat­i­fi­cação pre­sente entre ricos e pobres, trans­for­man­do a orga­ni­za­ção da sociedade em um ver­dadeiro abis­mo. As ideias do escritor tam­bém con­trastavam com o pen­sa­men­to reli­gioso, políti­co, artís­ti­co e social da época, reg­istro evi­dente em quase toda a sua obra. Da sua exten­sa ativi­dade int­elec­tu­al, tornaram-se sinôn­i­mos de clás­si­co os romances Guer­ra e Paz e Ana Karên­i­na, e a nov­ela A morte de Ivan Ilitch, con­sid­er­a­da por muitos críti­cos como a pri­ma-dona do gênero na lit­er­atu­ra mundi­al. A edição lança­da pela L&PM Pock­et em 1997, traduzi­da por Ver­am Karam, gan­hado­ra do prêmio Aço­ri­anos de Tradução, foi reim­pres­sa em 2010, pos­si­bil­i­tan­do que a con­sagra­da nov­ela de Tol­stói con­tin­u­asse chegan­do às mãos de novos leitores.

Pub­li­ca­da em 1886, A morte de Ivan Ilitch é fru­to dos últi­mos anos de vida de Tol­stói, que mor­reu aos 82 anos de idade na estação fer­roviária de Astapo­vo. Naque­la ocasião, o romancista tin­ha fugi­do de casa para iso­lar-se em um mosteiro, pois esta­va imer­so em uma fase de reclusão volta­da para a natureza e con­tem­plação reli­giosa, ati­tude que seguia à rev­elia de famil­iares e ami­gos. Em 1883, o escritor Ivan Tur­guêniev, ami­go ínti­mo de Liev Tol­stói, chegou a lhe escr­ev­er uma der­radeira car­ta dire­ta­mente do seu leito de morte, pedin­do que o ami­go voltasse para a lit­er­atu­ra. Moti­va­do por esse pedi­do ou não, Tol­stói retornou com a história do buro­cra­ta Ivan Ilitch Golovin, um sujeito que não soube viv­er e nem mor­rer, mas ten­tou encon­trar respostas para a morte durante o lon­go proces­so de ago­nia que enfrentou.

Foto do autor Leo Tolstoy

Foto do autor Leo Tolstoy

A nar­ra­ti­va começa pelo final, no pré­dio do Tri­bunal de Justiça em que Ivan Ilitch tra­bal­ha­va e onde sua morte foi comen­ta­da pelos seus cole­gas de tra­bal­ho e cartea­do. Ao invés de con­dolên­cias sin­ceras, os com­pan­heiros dis­cu­ti­am trans­fer­ên­cias e pro­moções de car­gos, vis­to que uma das vagas esta­va em aber­to. Com essa sutileza, Tol­stói per­corre o mun­do mesquin­ho de home­ns e mul­heres sem iden­ti­dade ou con­sciên­cia, cuja per­son­al­i­dade varia de acor­do com inter­ess­es ou posições. Pes­soas para quem a morte é pre­rrog­a­ti­va do viz­in­ho, con­sti­tuin­do-se em real­i­dade dis­tante de suas sossegadas existên­cias. Antes de ser viti­ma­do pela tene­brosa mor­tal­ha, Ivan Ilitch viveu como todos os seus con­frades: fil­ho de ofi­cial lota­do em car­gos e depar­ta­men­tos por puro aper­to de mãos, Ivan cresceu saben­do que seu des­ti­no seria seguir car­reira em órgão públi­co, pulan­do de setor em setor mes­mo que não tivesse a menor aptidão para isso. O que real­mente impor­ta­va eram as lig­ações políti­cas e soci­ais que con­seguiria travar ao lon­go da vida, lega­do que seu pai tra­tou de iniciar.

Depois de se for­mar em Dire­ito, Ivan Ilitch par­tiu para uma das provín­cias rus­sas para assumir o pos­to de secretário par­tic­u­lar e emis­sário do gov­er­nador, pre­sente dado pelo pai. Essas “entradas pela janela”, práti­ca igual­mente comum na história brasileira, eram o úni­co mun­do que o jovem buro­cra­ta con­hecia. Homem de ambições baseadas no lucro e na imi­tação da elite, Ivan seguia à risca o pro­to­co­lo lança­do por seus supe­ri­ores e pela alta-sociedade, fre­quen­tan­do ambi­entes pom­posos, humil­han­do sub­al­ter­nos, sus­ten­tan­do a máx­i­ma de que “ordens são ordens” e, prin­ci­pal­mente, aper­feiçoan­do-se na arte da bajulação.

Retrato de Tolstói por Ilya Efimovich Repin (1844-1930).

Retra­to de Tol­stói por Ilya Efi­movich Repin.

Esse esti­lo de vida basea­do em más­caras per­sis­tiu até mes­mo no casa­men­to, moti­va­do por beleza e con­veniên­cia, rene­gan­do o amor ao últi­mo plano. Ape­sar das histórias român­ti­cas que ali­men­ta­ram os sécu­los pas­sa­dos, a ideia do amor esta­va longe da alco­va de muitos casais, pois ain­da no sécu­lo XIX pre­domi­na­va o casa­men­to jus­ti­fi­ca­do por acor­dos e tro­ca de van­ta­gens entre as famílias. O buro­cra­ta Ivan Ilitch não fugiu à regra e mer­gul­hou de cabeça em um rela­ciona­men­to que só trouxe amar­guras, recla­mações e cobranças. Casa­do com Praskovya Fiodor­ov­na, mul­her dita de boa família, mas super­fi­cial e rabu­gen­ta, Ivan detes­ta­va o matrimônio e o con­ce­bia como um abis­mo sem fim, razão pela qual vivia enfur­na­do no tra­bal­ho. Nesse ele­men­to, percebe-se a críti­ca de Tol­stói con­tra a hipocrisia dos casa­men­tos sem amor, dese­jo ou respeito, práti­ca comum à época.

Anos des­gas­tantes se pas­saram e em uma de suas mudanças de car­go e casa, Ivan Ilitch sofreu um aci­dente caseiro, baten­do a região dos rins. No começo, a dor local­iza­da e o gos­to amar­go na boca não impres­sion­aram o buro­cra­ta. Somente depois, com a inten­si­fi­cação da sen­sação penosa, Ivan notou que algo anda­va muito mal. Procu­ran­do diver­sos médi­cos e espe­cial­is­tas, que nada diziam de útil ou váli­do, Ivan teve que encar­ar seu pesade­lo real: a aprox­i­mação da morte. O caráter do rus­so, ante­ri­or­mente mas­cara­do pelas obri­gações soci­ais, perde a camu­flagem e começa a sofr­er alter­ações. A super­fi­cial­i­dade dá lugar a uma dis­tân­cia fria, vio­len­ta, reple­ta de angús­tias e sen­ti­men­tos que tran­scen­dem o próprio Ivan Ilitch. O medo da morte ator­men­ta o con­fi­ante buro­cra­ta, que só encon­tra con­for­to na pre­sença de Geras­sim, empre­ga­do de mod­os serenos e com­por­ta­men­to honesto.

Durante a ago­nia de Ilitch, Tol­stói faz com que o leitor se aprox­ime do sofri­men­to, do sen­ti­men­to desagradáv­el – e evi­ta­do a todo cus­to – de recon­hecer sua fini­tude, de que um dia irá deixar de exi­s­tir como matéria, aniqui­lan­do tudo o que con­hece. Escri­ta de for­ma sim­ples, sem rodeios, A morte de Ivan Ilitch pos­si­bili­ta o ques­tion­a­men­to de decisões e for­mas com as quais a vida é con­duzi­da. Adi­anta ir emb­o­ra sem levar nada ver­dadeira­mente nos­so? A posição social e a com­ple­ta indifer­ença em relação ao mun­do valem mais a pena do que o amor aos nos­sos pares, a par­til­ha, a igual­dade e out­ros sen­ti­men­tos que deix­am mar­cas? Essas são ape­nas duas das inúmeras reflexões que a obra suscita.

Quadro “The Garden of Death”, do artista nórdico Hugo Simberg

Quadro “The Gar­den of Death”, do artista nórdi­co Hugo Simberg

Ivan Ilitch, um homem medíocre que acred­i­ta­va viv­er uma vida digna porque repro­duzia leis e aten­dia aos padrões da elite, um indi­ví­duo sem pen­sa­men­tos próprios, for­ma­do pelas ideias dos out­ros, teve como auge da vida o perío­do em que ficou doente ter­mi­nal e “tin­ha de viv­er à beira do pre­cipí­cio, soz­in­ho, sem uma alma que o enten­desse e dele tivesse com­paixão”. Ivan, dono de uma existên­cia sem raízes, encon­trou na mor­tal­i­dade o medo que elu­ci­da, o pâni­co que força a que­da do véu da ignorân­cia. Se a morte age silen­ciosa­mente e traz no ros­to o hor­ror sem gri­tos do quadro “The Gar­den of Death”, do artista nórdi­co Hugo Sim­berg, Tol­stói deu ao mun­do, na for­ma da história comum de um fun­cionário públi­co insignif­i­cante, a biografia de uma humanidade doente, metódi­ca e con­ge­la­da; a história de ani­mais mecâni­cos que só acor­dam com o sus­sur­ro que os leva embora.


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