Dogville (2003): Imaginário e símbolos de apreensão do real | Análise

Reflexões sobre a caixa humana cri­a­da por Lars von Trier 

dogville-analise-posterE a rachadu­ra na xícara de chá abre uma tril­ha para a ter­ra dos mor­tos”, escreveu o poeta W.H Auden. Partin­do dessa imagem, percebe­mos uma alame­da silen­ciosa e intrin­ca­da de caos, dúvi­das e inse­gu­ranças invadin­do o rotineiro e con­fortáv­el espaço social, per­son­ifi­ca­do pela figu­ra de uma xícara de chá. Um tipo de invasão sem vol­ta, pois pen­e­tra no esta­do de espíri­to de um grupo, nação ou comu­nidade, desnudan­do sim­u­lações e fazen­do cair más­caras. Esse é o cenário esboça­do pelo filme Dogville (2003), dirigi­do pelo dire­tor dina­mar­quês Lars von Tri­er, e cuja temáti­ca será obje­to de mapea­men­to, reflexão e análise no que con­cerne ao imag­inário mate­r­i­al da cidade e dos per­son­agens fictícios.

A história do lon­ga-metragem se pas­sa em uma vila chama­da Dogville, habita­da por pes­soas sim­ples, com anseios modestos e sem per­spec­ti­vas de mudança. Situ­a­do entre mon­tan­has, o vilare­jo tem pouquís­si­mo con­ta­to com o mun­do exte­ri­or, isolan­do os moradores aos lim­ites do lugar. A roti­na mecan­iza­da de Dogville reflete em uma comu­nidade aco­moda­da, sem capaci­dade cria­ti­va e com­ple­ta­mente entor­peci­da. Um de seus moradores, o aspi­rante a escritor Tom Edi­son (inter­pre­ta­do pelo ator Paul Bet­tany), avo­ca para si a autori­dade de “líder-comu­nitário” e ten­ta inserir novas ideias e dis­cussões no seio da comunidade.

Em um dado momen­to, a empoeira­da vila é toma­da de assalto pela pre­sença de Grace (vivi­da pela atriz Nicole Kid­man), forasteira que chega furtiva­mente à Dogville. Tom é o primeiro a ter con­ta­to com Grace, interce­den­do por ela per­ante os out­ros mem­bros do grupo. Depois de uma assem­bleia, fica deci­di­do que Grace terá duas sem­anas para con­quis­tar a con­fi­ança do povoa­do e, sug­es­tion­a­da por Tom, a forasteira decide ofer­e­cer sua aju­da aos habitantes.

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A “rachadu­ra na xícara”, ini­ci­a­da com o aparec­i­men­to de Grace, se estende durante toda a sequên­cia do filme, divi­di­do em nove capí­tu­los. No decor­rer da tra­ma, mudanças sub­stan­ci­ais acon­te­cem no pequeno vilare­jo e o ar de feli­ci­dade idíli­ca dá lugar à nuvem de fumaça den­sa, fúne­bre e tene­brosa. A pop­u­lação de Dogville começa mostran­do medo e descon­fi­ança em relação à per­manên­cia de Grace na cidade, mod­i­f­i­can­do o pen­sa­men­to pouco depois, já que todos os quinze habi­tantes estavam sendo ben­e­fi­ci­a­dos pelo tra­bal­ho da forasteira. O enre­do segue até rev­e­lar a ver­dadeira face de Dogville: de ami­gos acol­he­do­res, os habi­tantes pas­sam a predadores vorazes, tratan­do Grace como obje­to, esma­gan­do sua iden­ti­dade, desumanizando‑a.

Para enten­der como se dá a con­strução do imag­inário mate­r­i­al da cidade e de seus habi­tantes, cabe destacar a apos­ta do dire­tor Lars von Tri­er em um esti­lo cin­e­matográ­fi­co híbri­do, em que fig­u­ram ele­men­tos teatrais e literários. Com essa mis­tu­ra, as noções de real e irre­al se entre­laçam e sub­vertem os mod­e­los padrões, alteran­do tam­bém a per­cepção de ver­dadeiro e fal­so. O lon­ga-metragem apre­sen­ta car­ac­terís­ti­cas do teatro grego (insti­ga o dese­jo do espec­ta­dor pela vio­lên­cia crua), teatro do absur­do (inter­ação dos atores com obje­tos imag­inários), bem como a ausên­cia de fun­do musi­cal. Out­ro fator deci­si­vo na con­strução do filme é a uti­liza­ção de cenários desta­ca­dos no chão, mar­can­do a pre­sença de cada habi­tante no ambi­ente um do out­ro, e o uso de pare­des pre­tas (teatro caixa-pre­ta), val­orizan­do assim um for­ma­to mais intimista, volta­do à dra­mati­ci­dade e tensão.

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A fal­ta de “dis­trações cêni­cas” per­mite que o espec­ta­dor con­cen­tre a atenção nas relações que se embaraçam e desem­baraçam na cadeia dos acon­tec­i­men­tos. Dessa for­ma, obser­va-se a con­strução de Dogville como uma cidade para­da no tem­po, víti­ma de sua própria amar­gu­ra e solidão. A cul­tura da repetição, medioc­ridade e imutabil­i­dade toma con­ta do pequeno espaço, afo­gan­do os moradores em uma espé­cie de tor­por cego. Pre­sos em ideias fixas, eles não con­seguem enx­er­gar além dos seus próprios muros, e mes­mo inte­gran­do o todo — rep­re­sen­ta­do pelo espaço comu­nitário — os mem­bros de Dogville não se recon­hecem como indivíduos.

Os moradores per­dem a maior parte das horas do dia em suas ativi­dades cotid­i­anas, cuja úni­ca ori­en­tação vem do bada­lo monocór­dio do sino da igre­ja, admin­istra­do por uma habi­tante da vila, já que nen­hum padre jamais apare­ceu no local. Den­tre os habi­tantes, estão casais infe­lizes e apáti­cos (Chuck e Vera), pais que não sabem amar e edu­car os fil­hos; fab­ri­cantes de obje­tos e pro­du­tos sem qual­i­dade, mas que logram em cima da comu­nidade através de preços exor­bi­tantes (família Hen­son e sen­ho­ra Gin­ger); home­ns hipocon­dría­cos ou que se recusam a aceitar a enfer­mi­dade (dois extremos, rep­re­sen­ta­dos pelo ex-médi­co Thomas Edi­son, pai do autoin­ti­t­u­la­do escritor Tom, e o irascív­el cego McK­ay); além do trans­porta­dor de car­ga (Ben) que fre­quen­ta prostíbu­los e ten­ta escon­der o fato por ver­gonha, e a fax­ineira solitária e sua fil­ha deficiente.

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Em um primeiro momen­to, a inér­cia bucóli­ca do lugar encan­ta Grace que, cansa­da de fugir de supos­ta máfia, faz tudo para per­manecer no local. Quan­do os habi­tantes de Dogville percebem o poder que exercem sobre Grace, apelando para o medo que a descon­heci­da tem de ser entregue à polí­cia ou aos mafiosos, há uma rup­tura grada­ti­va no modo de trata­men­to. De “recém-inte­grante” do espaço comu­nitário, a forasteira se trans­for­ma em escra­va físi­ca e sex­u­al, sendo explo­ra­da de todas as maneiras possíveis.

A par­tir desse pon­to, Dogville começa a se con­struí­da como “cidade do cão”, onde pes­soas agem por instin­to ani­male­sco de poder e con­t­role, forçan­do Grace a ser um de seus obje­tos. Toda a mesquin­haria da cidade é camu­fla­da pela afir­mação medonha dos habi­tantes de que “só quer­e­mos o seu bem” ou “não gostaríamos de faz­er isso com você”, rep­re­sen­tan­do a imagem do algoz que açoi­ta e fla­gela, ale­gan­do que o faz pela graça de Deus e bem de toda a humanidade (vide a bar­bárie per­pe­tra­da pela San­ta Inquisição con­tra supos­tos hereges e o con­tín­uo mas­sacre étni­co e reli­gioso cometi­do nas ter­ras do Ori­ente Médio, por exemplo).

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O ide­al con­ser­vador, tradi­cional­ista e paca­to da cidade camu­fla o medo da mudança que asso­la o ínti­mo dos moradores, deixan­do-os capazes de qual­quer sel­vage­ria para con­ser­var a atmos­fera inerte e o comod­is­mo. No imag­inário dos moradores de Dogville, a cidade fun­ciona per­feita­mente bem, integra­da por ideais democráti­cos e solidários de manutenção de val­ores tradi­cionais e famil­iares. Mas com a chega­da de Grace, o espec­ta­dor começa a acom­pan­har o declínio moral e social da vila; ruí­nas que estavam escon­di­das na cegueira da cidade, em sua natureza amor­fa e imutável.

Ao pen­e­trar no nevoeiro que é a “cidade do cão”, Grace trans­for­ma-se no dedo em riste, uma espé­cie de ques­tion­a­men­to vivo às ima­gens con­struí­das sobre a vila e seus habi­tantes. As certezas de Tom Edi­son começam a ser removi­das, rev­e­lando ao próprio “escritor” que a últi­ma coisa que ele gostaria que acon­te­cesse era pas­sar por mudanças ou con­frontar sua vida. Por out­ro lado, Grace pro­va através de suas ações e reações diante de todas as bru­tal­i­dades das quais é víti­ma que “não estar mor­to não é estar vivo”, como disse o poeta e ensaís­ta E.E Cum­mings. A cria­tivi­dade e humanidade da jovem forasteira lem­bram à Dogville como a vila é peque­na em espíri­to, lim­i­ta­da geografi­ca­mente, tran­cafi­a­da em um mosaico de roti­nas, per­feita­mente adap­ta­da e esta­bi­liza­da em situ­ações que sequer con­hece ou entende.

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Com­preen­den­do o imag­inário como a cul­tura de um grupo, percebe-se a descon­strução das ima­gens de Dogville, desnudan­do o caráter tirâni­co de pes­soas catatôni­cas, inca­pazes de lidar com rup­turas. A vila imag­inária de Lars von Tri­er é um emble­ma das grandes cidades e sua “filosofia do absur­do”, onde a indi­vid­u­al­i­dade se perde no meio de relações super­fi­ci­ais e a sede do “poder de vida e de morte” afu­gen­ta sen­ti­men­tos, crian­do hierarquias.

Para super­ar taman­ho des­gaste, Grace faz refer­ên­cia ao esto­icis­mo e sua éti­ca do “imper­tur­báv­el, extir­pação das paixões e aceitação res­ig­na­da do des­ti­no” como for­ma de atin­gir à sabedo­ria. Dores, sofri­men­tos e infortúnios são esque­ci­dos e per­son­ifi­ca­dos na imagem de uma mul­her doce, meiga, com voz açu­cara­da e capaz de supor­tar as adver­si­dades. A con­strução dessa imagem faz refer­ên­cia a aceitação da sociedade atu­al, silen­ciosa e cati­va, sub­ju­ga­da por “poderes microscópi­cos”, expressão cun­ha­da pelo pen­sador francês Michel Fou­cault, que dom­i­nam, mar­t­i­rizam e dev­as­tam sua existência.

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Dogville remon­ta ima­gens do nos­so quadro social, assas­si­no de indi­vid­u­al­i­dades e toma­do por mesquin­harias. Como os habi­tantes desse pequeno povoa­do esque­ci­do, ali­men­ta­mos a ideia de que somos for­ma­dos por “justiça, igual­dade e frater­nidade”, escon­den­do o ros­to ao desumanizar e estigma­ti­zar o out­ro. A car­i­catu­ra do covarde per­son­agem Tom Edi­son mostra o lado intragáv­el do medo de encar­ar inse­gu­ranças e mudanças, da sub­mis­são a uma ordem social impos­ta, do ide­al de fetiche gregário e da ação instin­ti­va, com a bus­ca da sat­is­fação de neces­si­dades físi­cas e dos próprios interesses.

Saturno devorando seu filho

Sat­urno devo­ran­do seu filho

O des­fe­cho do filme, trági­co e inten­so – a exem­p­lo da dra­matur­gia gre­ga -, apre­sen­ta ima­gens dicotômi­cas e míti­cas, pre­sentes no imag­inário social. Ini­cial­mente con­ce­bi­da como Prom­e­teu, titã mitológi­co que, guia­do pelo amor aos humanos, decide ensiná-los a civ­i­liza­ção e as artes e é amaldiçoa­do por Júpiter (Zeus), sendo sev­era­mente cas­ti­ga­do, Grace vai assu­min­do a for­ma do quadro de Goya (Sat­urno devo­ran­do seu fil­ho), e engole a cidade inteira, queimando‑a e trucidando‑a.

Dogville é for­ma­da por sím­bo­los de apreen­são do real, emble­ma de ima­gens que são trans­for­madas em pes­soas, sen­ti­men­tos, situ­ações e coisas. Os per­son­agens da “cidade do cão” são metá­foras que unem obje­tivi­dade e sub­je­tivi­dade. Refle­tir sobre o imag­inário é com­preen­der sua importân­cia na con­strução da real­i­dade e na for­mação da iden­ti­dade humana, em toda sua inqui­etação e complexidade.


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