Trilogia Nikopol (2012), de Enki Bilal | HQ

Uma sociedade regi­da pela sep­a­ração e vio­lên­cia aos “pan­fletários”.

Somos todos mon­stros de nós mesmos

trilogia-nikopol-2012-de-enki-bilal-hq-capaAo ler “Trilo­gia Nikopol”, do Enki Bilal, nos deparamos com a seguinte reflexão gilber­tiana: “Quem hoje fala de futuro, sabe­mos que fala num tem­po que já é quase pre­sente, tal a rapi­dez com que esta­mos pas­san­do de pre­sente a futuro. Nun­ca mais do que hoje o homem viveu tem­po aparente só mod­er­no já tão alcança­do pelo pós-mod­er­no e ain­da influ­en­ci­a­do pelo pré-mod­er­no”. O que um per­nam­bu­cano tem em comum com um iugoslavo?

Ao abrir “Além do Ape­nas Mod­er­no”, de Gilber­to Freyre, e ler esse tre­cho, fiquei com von­tade de escr­ev­er sobre Bilal, um autor muito novo e difí­cil pra mim, mas que me desafiou a for­mu­lar algu­mas con­sid­er­ações sobre sua trilogia.

A Edi­to­ra Nemo fez um óti­mo tra­bal­ho ao reunir “A Feira dos Imor­tais”, “A Mul­her Armadil­ha” e “Frio Equador” num encader­na­do auda­cioso lança­do em 2012 por aqui, traduzi­do por Fer­nan­do Scheibe.

Enlaçan­do resum­i­da­mente as histórias, Bilal afir­ma que “se suce­dem nos três livros, cacos obsedantes e grotescos de nos­so mun­do, deuses egíp­cios ver­gonhosa­mente mal­trata­dos, um homem com nome de cidade da Ucrâ­nia (…), uma emblemáti­ca e aber­rante mul­her de pele bran­ca e cabe­los azuis nat­u­rais, ani­mais, ver­dadeiros, fal­sos (…) uma pirâmide voado­ra (…) e tam­bém histórias de amor e son­hos de cin­e­ma”. Este é o mosaico que vamos explo­rar a seguir.

Esta­mos em março de 2023, Paris. A atmos­fera “facis­ti­za­da” da cidade — mul­ti­povoa­da e sec­ciona­da em dis­tri­tos desiguais – é alter­a­da (em ple­na farsa eleitoral) pela aparição de uma pirâmide, esta­ciona­da no céu cinzen­to, pro­por­cio­nan­do um mal-estar cole­ti­vo aos habi­tantes, sobre­viventes desse “uni­ver­so de degenerescên­cia, mis­éria e imundície”.

Os ocu­pantes da pirâmide voado­ra exigem com­bustív­el ao dita­dor Fer­di­nand Chou­blanc. O silên­cio dele a respeito do fato “não tran­quil­iza ninguém”.

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No inte­ri­or da pirâmide, os deuses egíp­cios estão pre­ocu­pa­dos com o sum­iço de Hórus, con­de­na­do a perder sua condição eter­na por deserção e práti­cas sub­ver­si­vas con­tra a “ordem uni­ver­sal e a san­ta eternidade”. Nesse momen­to, Anúbis, Bes, Bastet e a cúpu­la inteira tra­mavam os cam­in­hos necessários para recap­turar Hórus e obri­gar Chou­blanc a ced­er com­bustív­el à pirâmide.

O proces­so de nego­ci­ação entre o dita­dor e os deuses fica ten­so, pois Chou­blanc sug­ere algo nada amigáv­el: “Estou pron­to a ced­er-lhes todo o com­bustív­el de que vocês neces­si­tam, (…) mas sob a condição de que vocês me con­cedam a imor­tal­i­dade em con­tra­parti­da”, pro­pos­ta que é inter­romp­i­da brus­ca­mente pelo cha­cal: “Bas­ta, Jean- Fer­di­nand Chou­blanc! Está fora de questão con­trari­ar a ordem universal!”

O dita­dor é expul­so da pirâmide, encer­ran­do as nego­ci­ações. Para­le­lo a esse acon­tec­i­men­to, o jor­nal “A Voz Legal” (instru­men­to pux­as­aquista de Chou­blanc) pub­li­ca um con­jun­to de notí­cias que pode tumul­tu­ar ain­da mais os rumos de Paris.

A impren­sa local tra­ta das nego­ci­ações entre Chou­blanc e Anúbis com cin­is­mo e vista grossa — típi­co dos jor­nal­is­tas “lambe-botas” dos dias de hoje -, atribuin­do tal como proces­so à “fineza diplomáti­ca”, detur­pan­do o que teste­munhamos nos basti­dores piramidais.

Corte para a lin­ha 4 (Met­ro­pol­i­tano): Porte D’Orléans de Clig­nan­court. Em proces­so de descon­ge­la­men­to, Alcide Nikopol ain­da não con­segue lem­brar como chegou ali. Joga­do na beira dos tril­hos, a úni­ca sen­sação que o tor­tu­ra é a forte dor na região da per­na amputa­da no aci­dente aéreo da sua cela criogêni­ca. Um sono de 30 anos.

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Eis que Hórus surge para “aux­il­iar” Nikopol com o grave fer­i­men­to, mas como para tudo é pre­cis­ar tro­car, o pás­saro lança sua pro­pos­ta: ofer­e­cer uma “per­na” (de fer­ro, extraí­da dos tril­hos) para Nikopol, e este con­ced­er seu cor­po para hospedar o espíri­to de Hórus. “E foi assim que teve lugar, no dia 03 de março de 2023, no metrô Alésia, a posse do cor­po de Alcide Nikopol por Hórus de Hierakonópolis”.

Tal encon­tro, pro­movi­do na primeira sequên­cia da trilo­gia (“A Feira dos Imor­tais”) ger­ou uma resul­tante de forças que irá sacud­ir a supos­ta tran­quil­i­dade do gov­er­no de Chou­blanc, ali­men­tan­do con­fli­tos políti­cos ter­restres e divi­nos, pren­den­do a res­pi­ração do leitor.

Nikopol e Hórus. Dois deser­tores, dois inimi­gos do poder, dois cor­pos em per­fei­ta sin­to­nia e con­ju­gação. Cor­pos e espíri­tos unidos, Hórus começa sua empre­ita­da e define para Nikopol seus obje­tivos na Ter­ra: depor Chou­blanc e con­stru­ir seu império. Após burlar todas as bar­reiras, final­mente Hórus manip­u­la a mente do gov­er­nante e vai dire­to ao ponto:

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O pro­longa­men­to da história (ini­ci­a­da nos anos 80) segue com “Mul­her Armadil­ha”, expon­do a fase de Nikopol dois anos após seu inter­na­men­to (eles e Chou­blanc enlouque­ce­r­am com a exper­iên­cia men­tal via-Hórus).

Através de um lev­an­ta­men­to hemero­grá­fi­co da época, Bilal cos­tu­ra o panora­ma políti­co do perío­do que Hórus/Nikopol pro­movem o golpe à Chou­blanc, para situ­ar o leitor historicamente.

Após ser con­de­na­do e iso­la­do numa câmara criogêni­ca, Hórus é lib­er­ta­do aci­den­tal­mente e vol­ta com tudo, rein­cor­po­ran­do-se ao cor­po de Nikopol, à contragosto.

Para­le­lo a este núcleo nar­ra­ti­vo, Bilal nos apre­sen­ta mais dois per­son­agens: o fil­ho de Nikopol (idên­ti­co, com a mes­ma idade do pai) e Jill, uma mul­her bran­ca, de lábios, lágri­mas e cabe­los azuis. Hórus artic­u­la um encon­tro entre Jill e Nikopol, ini­cian­do um triân­gu­lo amoroso-sex­u­al muito útil para os obje­tivos da ave. Os três via­jam ao Egi­to, em bus­ca de um escon­der­i­jo ade­qua­do para escapar da pirâmide voado­ra, que está caçan­do nova­mente Hórus.

A Mul­her Armadil­ha” bus­ca con­stru­ir um espaço de con­vivên­cia entre os per­son­agens, crian­do os laços necessários para desen­volver as afe­tivi­dades entre Jill e Nikopol, habil­mente con­tro­la­da por Hórus, que visu­al­iza em Jill uma arma potente para con­cretizar seus planos megalomaníacos.

E assim, Hórus foge do Cairo (Anúbis desco­bre seu escon­der­i­jo) com sua artil­haria pro­te­gi­da: o seu império ini­cia aqui, pois a ponte para a eternidade esta­va dev­i­da­mente acer­ta­da. Jill acred­i­ta que:

Nos­sa par­ti­da pre­cip­i­ta­da, provo­ca­da pela chega­da da Pirâmide voado­ra ao Cairo, tin­ha um cer­to ar de jogo que não me desagra­da­va. Isso me per­mi­tia, em todo caso, não me faz­er per­gun­tas demais sobre o nasci­men­to de min­has estra­nhas relações com a dupla Nikopol/Hórus, sobre a qual ignoro até hoje, quase tudo”.

A nave segue rumo ao “Frio Equador”, onde os dois se sep­a­ram e o amor vira son­ho de cin­e­ma. Bilal gos­ta de pro­duzir novos hor­i­zontes para suas histórias, tran­si­tan­do dos quadrin­hos para o cin­e­ma sem­pre que pos­sív­el. É o que podemos con­ferir em adap­tações audio­vi­suais como Bunker Palace Hotel (1989), Tykho Moon — Seg­re­dos da Eternidade (1996) e Immor­tel (ad vitam) (2004), basea­do na trilo­gia Nikopol.

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Nas suas leituras cin­e­matográ­fi­cas, a adap­tação resul­ta numa “descon­strução” do núcleo nar­ra­ti­vo das HQs, para ger­ar um novo sen­ti­do aos per­son­agens em con­fli­to, como se fos­se uma “exten­são” do que lemos, um pós-história, o que arrisco a chamar de pós-história exper­i­men­tal, para efe­t­u­ar novos rabis­cos no cor­po dos atores, uma per­for­mance em proces­so de ree­scri­ta do tex­to orig­i­nal. Bilal acred­i­ta que suas tra­mas podem ir além dos desen­hos e faz uma exigên­cia: com­por novas pos­si­bil­i­dades aos seus mun­dos, ele quer músi­ca, movi­men­to, mise en scene. Out­ros des­fe­chos para cri­ar out­ras sensibilidades.

A trilo­gia é recon­fig­u­ra­da num mix de histórias que cruzam out­ros inter­ess­es de Bilal no uni­ver­so Nikopol. Mais nomes, out­ras cores, ten­sões políti­cas ree­scritas surgem para o autor explo­rar livre­mente, tor­nan­do o cin­e­ma fun­da­men­tal para suas vivên­cias estéti­cas em andamento.

O peso dos tons envel­he­ci­dos de um futuro em crise é sub­sti­tuí­do pela lev­eza azu­la­da de Jill e da ani­mação com­puta­doriza­da, que dis­tan­cia-se dos odores mal-cheirosos, da neve suja de lama, do con­cre­to mal con­ser­va­do e da imagem vis­cer­al expostas na HQ.

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A pais­agem audio­vi­su­al de “Immor­tel (ad vitam)” é com­pos­ta por uma nova estru­tu­ra nar­ra­ti­va, que serve como suporte para con­stru­ir vari­a­dos exer­cí­cios de cri­ação na jor­na­da dos per­son­agens cen­trais. Aqui podemos sen­tir uma Jill menos rad­i­cal. Aqui ela é car­ente de suas ori­gens, amáv­el e frágil.

Nos­so Nikopol é menos rús­ti­co, sedu­tor e firme em seus posi­ciona­men­tos per­ante Hórus. Este man­tém sua rigidez — como lemos na trilo­gia — crian­do sua platafor­ma de per­pet­u­ação e con­t­role do plan­e­ta a lon­go pra­zo, toman­do o cor­po de Nikopol como ponte para a vin­gança con­tra os deuses mag­istra­dos do Egi­to (no filme, tal ação é mais “explica­ti­va” do que no texto-base).

Uma opor­tu­nidade para ampli­ar os hor­i­zontes cria­tivos de Paris pós-tudo. Um cam­in­ho sofisti­ca­do para per­pet­u­ar o lega­do de Hórus, mais difun­di­da ao públi­co não-leitor ou já fã do tra­bal­ho de Bilal (talvez os mais “lig­a­dos ao tex­to-HQ” não aceit­em este per­cur­so, mas, quem se impor­ta? Se o filme é uma par­ti­tu­ra regi­da pelo próprio cri­ador?). Goran Vejvo­da pro­duz uma sonori­dade-sen­so­r­i­al pen­e­trante em todos os momen­tos, cor­ta­da brus­ca­mente por um hap­py-end que deixa a dese­jar, mas nada prej­udique o con­jun­to da obra. Lança­do em 2004, “Immor­tel (ad vitam)” merece atenção e uma cuida­dosa análise com­par­a­ti­va com os quadrinhos.

trilogia-nikopol-2012-de-enki-bilal-hq-4E assim, tomo essa obra como ele­men­to de reflexão sobre o mal-estar do autor per­ante o futuro, que se aprox­i­ma-chega de for­ma assus­ta­do­ra. Um futuro cin­za, demar­ca­do pela deses­per­ança do homem pelo homem, este ati­ra­do numa dis­pu­ta ani­malesca pelo con­t­role do Out­ro e de si.

Vejo nes­ta trilo­gia a expec­ta­ti­va de um vir-a-ser despedaça­do, cor­pos endure­ci­dos pelo fas­cis­mo tri­un­fante, gov­er­na­do por tira­nos cada vez mais enlouque­ci­dos pelo poder. Uma sociedade regi­da pela sep­a­ração e vio­lên­cia aos “pan­fletários”.

O homem e a mul­her: sui­ci­das em poten­cial. É pre­ciso tomar os com­prim­i­dos de Jill? Os gatos telepatas serão nos­sos mel­hores ami­gos em tem­pos de enges­sa­men­to do amor e do esgo­ta­men­to da con­fi­ança? Como escapar ao olho mor­tal do KKDZO? Seria a sel­va de Equador City o Eldo­ra­do pós-pós-tudo? As prisões criogêni­cas são penal­i­dades ou o pas­s­aporte para a fuga des­ta ger­ação? Hórus e Chou­blanc encar­nam tem­po­ral­i­dades que rev­e­lam rup­tura o con­tin­uís­mo com o pre­sen­tepas­sad­o­fu­turo? Nikopol é a zona inter­mediária do tem­po tríbio gilber­tiano? Nos­so des­ti­no está sela­do ao impul­so autode­stru­ti­vo? Somos Além de Ape­nas Mod­er­nos ou Aquém de Nos­sas Expectativas?

Nikopol é uma “real­i­dade [insur­gente] na qual se cruzam sobre­vivên­cias, [pro­jeções] e ante­ci­pações”. Seu cor­po é a “fusão tem­po­ral [que] com­ple­ta [Hórus] e o per­eniza. Eterniza‑o em épocas para além e para aquém do pensamento”.

Bilal provo­ca uma série de questões que somente as próx­i­mas ger­ações irão respon­der, num futuro bem próx­i­mo, pos­sív­el e cru­el. Nikopol nos deixa uma lição que fica clara aos leitores do pas­sado­p­re­sente: somos mon­stros de nós mesmos.


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Dossiê Daniel Piza
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