O Dia M (2008), de Paulo Leierer | Curta

Quan­do o homem desco­bre a grande infe­li­ci­dade de estar só

o-dia-m-paulo-leierer-curta-1Esta grande infe­li­ci­dade, a de não estar só”, rev­e­lado­ra sen­tença do ensaís­ta francês La Bruyère (1645 ‑1696), foi escol­hi­da pelo con­tista e poeta Edgar Allan Poe, mestre da “beleza mór­bi­da” literária, para ilus­trar o con­to “O Homem da Mul­ti­dão”. Pub­li­ca­da em 1840, a história nar­ra as per­cepções feitas por um homem que obser­va o trân­si­to de pes­soas na rua. A par­tir das car­ac­terís­ti­cas físi­cas, indu­men­tárias e ges­tu­ais, o obser­vador vai desnudan­do a iden­ti­dade de per­son­agens anôn­i­mos. Em dado momen­to, quan­do avista um sujeito idoso, com roupas que escon­dem requinte atrás da sujeira e movi­men­tos ansiosos para se mis­tu­rar à mul­ti­dão das ruas, o nar­rador ini­cia uma lou­ca perseguição. A cada novo pas­so, ele percebe que o “homem das mul­ti­dões” recusa-se a estar só; seu maior dese­jo é per­am­bu­lar anon­i­ma­mente entre a tur­ba londrina.

Ser alguém sem nome e sem ros­to no furacão cole­ti­vo, aca­len­ta a con­sciên­cia humana com uma fal­sa sen­sação de segu­rança, con­stru­in­do um caste­lo de areia con­tra o medo da morte. A solidão e a morte andam de braços dados, tor­nan­do o indi­ví­duo ape­nas uma partícu­la inex­is­tente entre tan­tos organ­is­mos vivos. Esse é o sen­ti­men­to de Almei­da, per­son­agem do cur­ta-metragem O Dia M, dirigi­do por Paulo Leier­er. Inter­pre­ta­do pelo ator Caco Cio­cler, Almei­da é um homem na casa dos trin­ta anos que desco­bre, através de exam­es lab­o­ra­to­ri­ais, que seus dias de vida estão con­ta­dos. Soz­in­ho em sua casa, ele decide que pre­cisa lidar com a situ­ação e infor­mar às pes­soas próx­i­mas que está cam­in­han­do para a estra­da do sono eterno.

No entan­to, a notí­cia de sua morte não parece afe­tar abso­lu­ta­mente ninguém ao seu redor. Assim como o ‘homem da mul­ti­dão’ de Poe, Almei­da vai per­am­bu­lan­do entre casas, ruas, pes­soas e cemitérios, mis­tu­ran­do-se ao cotid­i­ano de ros­tos egoís­tas, cansa­dos, amar­gu­ra­dos e indifer­entes. Lem­bran­do a nov­ela rus­sa “A morte de Ivan Ilitch”, de Liev Tol­stói, mas sem sequer ter a pre­sença con­for­t­ante de um Geras­sim, o solitário mori­bun­do Almei­da se vê às voltas com as más­caras humanas. Per­to do leito de morte, ele está só. Com­ple­ta­mente só.

Sunday, 1926 por Edward Hopper

Sun­day, 1926 por Edward Hopper

Duas das cenas mais assom­brosas do dra­ma são espremi­das na cara do espec­ta­dor logo no começo do cur­ta, quan­do Almei­da vai à casa dos pais para anun­ciar sua morte e, em segui­da, procu­ra con­tratar os serviços de um despachante funerário. No meio da incredul­i­dade furiosa do pai e do deboche sar­cás­ti­co do despachante, Almei­da encara silen­ciosa­mente a frag­ili­dade de tudo o que imag­i­na­va ser e ter.

On the Stream of Life - Hugo Simberg

On the Stream of Life — Hugo Simberg

Vence­dor de Mel­hor Cur­ta no Hol­ly­wood Brazil­ian Film Fes­ti­val – HBRFEST em 2009 e do Troféu Shoe­string no Rochester Inter­na­cional Film Fes­ti­val, tam­bém em 2009, O Dia M foi sele­ciona­do em inúmeros fes­ti­vais nacionais e estrangeiros. A anôn­i­ma tra­jetória de um homem que per­corre a mul­ti­dão e que dese­ja deses­per­ada­mente ser nota­do, pois o dia de seu adeus defin­i­ti­vo galopa a pas­sos lar­gos e ele estará mais solitário do que a própria morte, con­fronta o indi­ví­duo com sua existên­cia: Será que sig­nifi­camos algu­ma coisa? Alguém sen­tirá nos­sa ausên­cia? Atrav­es­sare­mos soz­in­hos o abis­mo da morte? Até que pon­to a atom­iza­ção do homem o faz quer­er ser partícipe do cole­ti­vo, para depois empurrá-lo para a condição real de solidão e esquecimento?

Essas são algu­mas das questões com as quais o cur­ta-metragem inda­ga o espec­ta­dor, dan­do firmeza à pro­pos­ta do dire­tor Paulo Leier­er e de toda a equipe. Destaque para a tril­ha sono­ra do filme, com a faixa “First Breath After Coma” (álbum The Earth is not a cold dead place), da ban­da amer­i­cana de post rock Explo­sions in the Sky.

Visual­mente, O Dia M lem­bra uma mis­tu­ra das pin­turas solitárias de Edward Hop­per com as lúgubres visões da morte retratadas pelo nórdi­co Hugo Sim­berg. Ou, nas palavras do poeta Rain­er Maria Rilke: “A solidão é como uma chu­va. Ergue-se do mar ao encon­tro das noites; de planí­cies dis­tantes e remo­tas sobe ao céu, que sem­pre a aguar­da. E do céu tom­ba sobre a cidade. (…) Então, a solidão vai com os rios…”.

Assista o cur­ta-metragem aqui:


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