Em Eles Eram Muitos Cavalos, de Luiz Ruffato, São Paulo se apresenta nua e crua, porém inteira. Como se fosse vista através vários olhares estrangeiros, por relatos das pessoas que circulam por ali todos os dias.
É uma terça-feira do ano 2000 e ali estão todos os traços de um dia apocaliptico de fim de século. Em Eles Eram Muitos Cavalos a narrativa se dá como se estivéssemos assistindo a um documentário que nos desse acesso a tudo o que está acontecendo em uma metrópole em um único dia: temperatura, descrições de personagens, falas entrecortadas, monólogos e etc. A proposta é montar uma colcha de retalhos da formação urbana de São Paulo. Tudo está ali, desde modelos frustradas, passando por folhas de classificados num metrô até o clássico retirante vindo em busca de uma vida melhor. A produção de imagens da realidade é intensa e situa o leitor no tempo e em velocidade própria que lembra muito uma produção audiovisual.
A literatura há muito deixou de ser, se é que algum dia foi, uma arte isolada, ou a única detentora da palavra. Hoje ela funciona como reflexo do caos urbano, da ligeireza das vidas e da finitude do tempo. A literatura é, e necessita ser, tudo ao mesmo tempo e para isso as fronteiras entre o real e o ficcional começam a se tornar, a cada obra, menos espessas. Luiz Ruffato trata dessa contemporaneidade de forma primorosa deixando que cada experiência possa ser tão pŕoxima e intimista que você fica se perguntando se aquela situação não é da sua vizinhança ou com alguma pessoa próxima, pois sabe que já ouviu e viu aquilo antes.
O autor usa recursos realistas clássicos, inclusive a ironia Machadiana, e em muitos momentos o exagero de descrições e o peculiar das falas faz com que o leitor se obrigue a criar laços da ficção com a realidade, se confundindo muitas vezes com estes vultos urbanos descritos. De fato, uma experiência única em que Luiz Ruffato sabe adaptar cada pequena proposta e mudar o cenário de forma que o leitor mal cria laços com a situação e logo parte para a pŕoxima, não deixando de criar uma sequência. A multiplicidade de vozes é o ponto forte da narrativa, o leitor passa a ser um sujeito coletivo, participante de cada vida ou momento das 69 experiências ali propostas. É uma grande câmera em que o leitor apenas acompanha os travelings da narrativa.
E que a verdade seja dita, por mais que as premissas sejam extremamente negativas sobre qualquer relação que o cinema possa ter com a literatura, hoje é muito difícil desvincular as duas linguagens. Principalmente na literatura tida como contemporânea, a linguagem marcada das películas se faz presente no texto. No caso de Eles Eram Muitos Cavalos é a sensação documental que predomina durante todo o discurso. Não existindo um personagem principal ou narrador, é o próprio leitor que circula por todos os meios daquele dia comum de São Paulo, mostrando que a geografia dos espaços também é um belo cenário.
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