DOC de Amor (2010), de Jucélio Matos

Quan­do duas mãos deci­dem se sep­a­rar do quar­to proibido: os Amores de Jucélio Matos.

Esse amor sem razão.
Sem val­or amanhã.
Mes­mo assim arderá eternamente.

Mari­na Lima

O cin­e­ma brasileiro inde­pen­dente col­he seus fru­tos. Vive­mos uma fase mar­ca­da pelas novas pos­si­bil­i­dades de pro­dução audio­vi­su­al em vir­tude da democ­ra­ti­za­ção das mídias e suporte de expressão. Hoje é pos­sív­el colo­car em práti­ca ideias, até então amar­radas pela lim­i­tação dos recur­sos téc­ni­cos, que esta­va disponív­el nas mãos de poucos. Ago­ra podemos cri­ar e faz­er cin­e­ma no Brasil em per­spec­ti­va plur­al, exper­i­men­tan­do a lin­guagem den­tro de nos­sas via­bil­i­dades e dese­jos de cri­ação, com nos­sos celu­lares, máquinas fotográ­fi­cas e demais dis­pos­i­tivos móveis.

Novos doc­u­men­taris­tas surgem nes­sa safra cria­ti­va, pro­duzin­do sen­ti­do à História – seja na políti­ca, nos debates soci­ais, religião, etc — no caso de Jucélio Matos, às histórias das sen­si­bil­i­dades con­tem­porâneas. Ao ini­ciar seus estu­dos sobre cin­e­ma em 2004, Jucélio se rev­el­ou para a cena audio­vi­su­al per­nam­bu­cana em pouco tem­po, com o filme Doc de Amor (2010).

Real­iza­do para um tra­bal­ho de con­clusão de cur­so da Fac­ul­dade Mau­rí­cio de Nas­sau, o filme já des­bravou qua­tro fes­ti­vais (Fes­ti­val Brasileiro de Cin­e­ma Uni­ver­sitário (RJ), Cur­ta Cabo Frio (RJ), Fes­ti­val do Filme etno­grá­fi­co do Recife (PE) e Arra­ial Cine Fest (BA)) e vem gan­han­do espaço por onde pas­sa, ao explo­rar um tema descon­cer­tante e mis­te­rioso para muitos de nós: o Amor.

O filme apre­sen­ta um mosaico de histórias: expon­do a vida de várias pes­soas comuns viven­do seu dia-dia, sejam nos pos­tos de gasoli­na, nos bares, nas coz­in­has, nas casas, nas aven­turas ou nos lanch­es habit­u­ais de fim de tarde. Em cada coração que tran­si­ta no filme, podemos encon­trar difer­entes reina­dos, que deci­dem as for­mas de viven­ciar suas noções de Amor.

O filme prob­lema­ti­za o ato de amar, vis­to nos depoi­men­tos como rup­tura das con­venções, que antes pren­di­am nos­sos cor­pos numa estru­tu­ra rígi­da, sus­ten­ta­do pelo sen­so mas­culin­izante da sociedade, lim­i­tan­do as pos­si­bil­i­dades de exper­i­men­tação dos sentidos.

Jucélio sabe cap­tar os aro­mas das per­spec­ti­vas, das vozes que pren­dem o espec­ta­dor nas nar­ra­ti­vas mais ínti­mas, na bus­ca de pro­duzir vários sabores que se aprox­i­mam do pal­adar de Rodol­fo, o coz­in­heiro real, espe­cial­ista em trans­for­mar o Amor num con­jun­to de porções regadas à sal­a­da verde (lev­eza), com um toque de arroz mar­ro­quino (con­sistên­cia), mescla­do com pro­teí­na — entre o salmão e o camarão (ener­gia e tran­qüil­i­dade), fechan­do com um café e choco­late, para não perder o ânimo.

Nem sem­pre o Amor é vis­to como trân­si­to de liber­dade. Ele tam­bém é con­t­role e dis­ci­plina, como aque­le pote de jujubas que você não pode devorá-lo de ime­di­a­to, mas só pode com­er um, sob o monopólio de uma tuto­ra, que impede o dese­jo de se lam­buzar no açú­car. É o que podemos ver no reina­do de Paula, que percebe o Amor numa lóg­i­ca de jogo e con­t­role – muitas vezes de for­ma tirâni­ca – para ger­ar “fun­cional­i­dade” e medi­da na relação. Para ela, “amar é cas­ti­go. Nada sobre con­t­role, tudo em peri­go. Adoráv­el pen­itên­cia, chicote ami­go. Se chegar a falên­cia, mor­ro con­ti­go”.

Entre comi­da e con­t­role, temos expec­ta­ti­va e morte, entre risos e timidez, temos a rep­re­sen­tação cêni­ca que faz do Amor um grande espetácu­lo, demar­can­do as fron­teiras entre o real e o dese­jo. Até que pon­to nos é per­mi­ti­do que­brar mais de um pote e saciar nos­sa fome?

Cada vida aber­ta nos ensi­na que o Amor não é vis­to ape­nas por um ângu­lo, mas vivi­dos em múlti­p­los olhares não-con­tem­pla­tivos, que fazem do sen­ti­men­to um cam­po de exper­iên­cias e tro­ca de sen­si­bil­i­dades, mes­mo que o out­ro não fale sua lín­gua, ou que não con­si­ga viv­er no mes­mo teto. Os amores enquan­to proces­so, fluxo e instru­men­to de redefinição con­stante de cada indivíduo.

O filme não expõe o Amor enquan­to efe­ti­vação, resul­ta­do final, pre­vis­i­bil­i­dade, o que Jucélio procu­ra é tran­si­tar pelas exper­iên­cias que se colo­cam diante de nós, para com­par­til­har um con­jun­to de visões em proces­so de con­strução, muitas vezes não-ditas no uni­ver­so sen­so-comum, que é vigia­da pela estu­pid­ez da vir­il­i­dade machista, restri­ta ao moral­is­mo tri­un­fante do homem sifil­izador e da mul­her recata­da, enri­je­ci­da pela tradição do cor­po que se fecha para os pos­síveis e impossíveis.

Para­le­lo às nar­ra­ti­vas, Jucélio explo­ra no filme o uso de leg­en­das para con­tar out­ra história, exigin­do do espec­ta­dor atenção redo­bra­da no cruza­men­to entre o tex­to e as ima­gens. Era uma vez, um príncipe que “só gosta­va de príncipes”, com receio de perder todas as suas riquezas, o príncipe “decide escr­ev­er um dis­cur­so a todo seu reina­do”, um pro­nun­ci­a­men­to que fala do Amor.

Para rece­ber inspi­ração, o príncipe vai à bus­ca de con­viv­er com pes­soas que com­par­til­havam das mes­mas emoções. As leg­en­das que nar­ram esta história não apare­cem numa ordem defini­da, mas durante todo o filme, dis­per­sas entre as vozes que rev­e­lam seus amores ao espec­ta­dor. As leg­en­das tam­bém são uti­lizadas em algu­mas cenas para acom­pan­har simul­tane­a­mente os depoimentos.

Quan­do entre­vista Rodol­fo, Jucélio exper­i­men­ta tro­car a voz do depoente pelas leg­en­das, onde a entre­vista é tex­tu­al­iza­da, a par­tir de um corte na cena, para invert­er a relação que o espec­ta­dor man­tinha até então com o filme. Nesse momen­to, quem assiste é tam­bém leitor, ao acom­pan­har a con­ver­sa entre os dois, a par­tir do tex­to disponív­el, silen­cian­do as vozes, ao destacar ima­gens de Rodol­fo no tra­bal­ho, coz­in­han­do, despre­ocu­pa­do com a pre­sença da câmera, que fixa o olhar em seus movi­men­tos quase automáti­cos na cozinha.

Jucélio Matos, dire­tor do documentário

Já no final do filme, Jucélio retoma as leg­en­das para con­cluir que o príncipe, ao escr­ev­er seu dis­cur­so, “apron­tou-se ele­gan­te­mente… e desis­tiu. Não havia sen­ti­do em falatório algum. Porque ape­sar de amor rimar tan­to com dor, ele resolveu acred­i­tar no tem­po pre­sente. Inde­pen­dente em qual lado do espel­ho estivesse. E a real­i­dade e ficção viraram assim, um só amor”.

Seria o príncipe do Doc de Amor uma exten­são de Jucélio? Ou nos­sas exten­sões mais ínti­mas, postas em questão? Para aden­trar neste uni­ver­so que se des­faz com uma névoa bran­ca, que se perde entre as fol­has e o céu, é pre­ciso se per­mi­tir, ati­var todos os poros que ain­da nos restam para con­sumir e ser con­sum­i­do pelos amores que com­par­til­hamos num espaço aber­to-fecha­do-aber­to, num exer­cí­cio con­stante de rein­venção dos con­ceitos que cer­cam o Amor, a fim de torná-lo livre, para degus­tações afe­ti­vas, em quem sabe, efetivas…

O sol rea­parece, os cor­pos são obri­ga­dos a se sep­a­rar… é hora de ir emb­o­ra para casa… mas, como diz Jorge Maut­ner*, “min­has lágri­mas se acabaram, mas não a von­tade de chorar… só o amor pode matar o medo”.

Esse é o Doc de Amor, meu Doc de Amor, que Jucélio Matos fez para o mun­do. Por uma história das sensibilidades.

* Jorge Maut­ner em Ressureições do álbum Revirão (Warn­er Music), de 2007


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