Istambul – Memória e Cidade, de Orhan Pamuk | Livro

Uma cidade em pre­to e bran­co: o memo­ri­al­ista Orhan Pamuk descreve a vida em Istam­bul, seus mis­térios, belezas e melancolias

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Capa do livro pela Com­pan­hia das Letras

Nos últi­mos meses, o mun­do tem con­heci­do o poder da mobi­liza­ção pop­u­lar na Turquia, onde protestos reuni­ram quase 2,5 mil­hões de pes­soas. As cidades de Istam­bul e Ancara, esta últi­ma a cap­i­tal do país, con­cen­tram o maior número de atos de protesto con­tra o gov­er­no vigente. No Brasil, a situ­ação não tem sido difer­ente e, à semel­hança do que vêm acon­te­cen­do na Turquia, os movi­men­tos pop­u­lares estão sendo dura­mente reprim­i­dos por gov­er­nos autoritários e coercitivos.

Antes dess­es impor­tantes acon­tec­i­men­tos soci­ais e políti­cos, a grande maio­r­ia dos brasileiros teve o primeiro con­ta­to com a cul­tura tur­ca através da afe­ta­da nov­ela glob­al Salve Jorge, com suas dançari­nas de olhos mar­ca­dos, cenários hiper­boli­ca­mente exóti­cos e uma pop­u­lação “arabesca”, bem ao gos­to dos fetich­es oci­den­tais. Diminuir a importân­cia de uma cul­tura transformando‑a em pro­du­to das indús­trias cul­tur­ais tem sido uma práti­ca incan­sáv­el de veícu­los de entreten­i­men­to e comu­ni­cação, bem como de insti­tu­ições sacra­men­tadas, que usam tudo o que podem para angari­ar lucros e difundir ideologias.

Feliz­mente, não foi dessa vez que eu despen­quei no abis­mo desse esque­ma, pois meu inter­esse pela cul­tura tur­ca remete aos meus treze anos de idade, quan­do escutei pela primeira vez a músi­ca “Şımarık”, do can­tor e per­former Tarkan. De lá para cá, ten­ho sido guia­da por uma espé­cie de “mão invisív­el do des­ti­no” para tudo o que faz refer­ên­cia à Turquia: fiz grandes ami­gos em Istam­bul, Ancara, İzmir e Amas­ra, come­cei a apren­der a lín­gua do país e procu­rar por escritores, poet­as e músi­cos tur­cos. Foi assim que me deparei com Istam­bul – Memória e Cidade (orig­i­nal İst­anb­ul: Hatıralar ve Şehir), exten­so romance memo­ri­al­ista de Orhan Pamuk, primeiro escritor tur­co a rece­ber o Prêmio Nobel de Lit­er­atu­ra (ano de 2006). A edi­to­ra Com­pan­hia das Letras lançou a pub­li­cação brasileira em 2007, com tradução de Ser­gio Flaks­man e basea­da na tradução ingle­sa da obra, assi­na­da por Mau­reen Freely.

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Orhan Pamuk

As memórias auto­bi­ográ­fi­cas de Orhan Pamuk se mis­tu­ram a relatos de via­jantes oci­den­tais famosos, escritores tur­cos imer­sos em ruí­nas e tris­tezas e acon­tec­i­men­tos que mar­caram para sem­pre o coração da cidade mais famosa da Turquia. O livro é um apan­hado detal­ha­do da vida em Istam­bul com todas as suas belezas e decadên­cias, onde as ruas estão cer­cadas pelas man­sões dos anti­gos paxás, com­ple­ta­mente destruí­das pelo fogo e pelo tem­po; famílias ric­as dese­jam a qual­quer cus­to osten­tar uma imagem oci­den­tal­iza­da, desprezan­do tudo o que faz refer­ên­cia ao império otomano ou às tradições ori­en­tais. Entre citações de escritores tur­cos como Yahya Kemal, Reşat Ekrem Koçu, Ahmet Ham­di Tan­pı­nar e Ahmet Rasim, famosos por descreverem detal­h­es que até mes­mo uma boa parte dos “Istan­bul­lus” descon­hece, o pre­mi­a­do memo­ri­al­ista dá ao leitor um panora­ma ger­al da cidade que o viu nascer e crescer, capaz tam­bém de des­per­tar sen­ti­men­tos contraditórios.

Orhan Pamuk nasceu em 1952, den­tro de uma família bur­gue­sa que entra­va grada­ti­va­mente em ruí­na finan­ceira. Jun­to com seu irmão mais vel­ho, Orhan cresceu rodea­do por par­entes e pela pre­sença autoritária da avó pater­na. Ape­sar das inten­sas dis­putas inter­nas pela posse de pro­priedades e bens, tios, tias, mães, pais, irmãos, sobrin­hos e avó se reu­ni­am na mesa de jan­tar e sus­ten­tavam as aparên­cias. Segun­do descrição con­ti­da no livro, esse tipo de com­por­ta­men­to inco­mo­da­va o escritor des­de pequeno, mas só ao pon­to de não inter­ferir em seu próprio mun­do. As brigas ger­adas no seio do Edifí­cio Pamuk trazi­am à tona a real­i­dade de uma sociedade des­gas­ta­da, arru­ina­da pelas mudanças que se oper­avam na ten­ta­ti­va de apa­gar o pas­sa­do, impon­do uma vida oci­den­tal­iza­da para esque­cer as ori­gens. A família Pamuk não era reli­giosa e não fix­a­va seus princí­pios em segui­men­tos tradi­cionais de obe­diên­cia cega, o que deixou espaço para um desen­volvi­men­to int­elec­tu­al e pes­soal maior. Orhan e seu irmão vivi­am no con­for­to de car­ros impor­ta­dos, esco­las caras e pas­seios famil­iares ao Bós­foro, desta­ca­do pelo autor como parte cen­tral da vida de qual­quer habi­tante de Istambul.

Pintura de Melling, do livro "Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore"

Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

O livro vem reple­to de fotografias em pre­to e bran­co – exata­mente como o autor con­cebe a cidade -, além de traz­er um min­u­cioso tra­bal­ho de pesquisa. Para falar a ver­dade, Orhan Pamuk colo­ca para fora toda a obsessão de memo­ri­al­ista que o persegue, com 408 pági­nas de uma trav­es­sia lenta, melancóli­ca e silen­ciosa, escri­ta em tons de cin­za. Para o “olhar oci­den­tal”, é inter­es­sante con­hecer as impressões que o fab­u­loso pin­tor Antoine Ignace Melling teve de Istam­bul, através das ima­gens de suas obras repro­duzi­das no livro. Destaque tam­bém para comen­tários de Pamuk aos difer­entes relatos dos france­ses Gerárd de Ner­val, Theóphile Gau­ti­er e Gus­tave Flaubert sobre Istam­bul, influ­en­cian­do dire­ta­mente autores turcos.

Orhan Pamuk

Orhan Pamuk

É inegáv­el a destreza e segu­rança com que Pamuk expõe as nuances que car­ac­ter­i­zam a sua cidade, procu­ran­do faz­er para­le­los com sua vida pes­soal. No decor­rer das pági­nas, o leitor tam­bém se depara com fotos do arqui­vo famil­iar, mostran­do Orhan e seu irmão pequenos, assim como os par­entes em ger­al. Par­tic­u­lar­mente, tive a sen­sação de que as palavras do autor trazem uma car­ga de melan­co­l­ia, con­fir­ma­da ain­da mais pelas fotografias das ruas cinzen­tas, degradadas e pouco ilu­mi­nadas de Istam­bul, assim como pelo triste olhar da mãe de Orhan, mul­her lindís­si­ma e de embaraço melancóli­co, eterniza­do pela imo­bil­i­dade fotográfica.

Assim como o Brasil tem a palavra “Saudade” como um vocábu­lo úni­co, os “Istan­bul­lus” têm o ter­mo “Hüzün” para definir a inten­sa melan­co­l­ia que sen­tem. A importân­cia dessa palavra é tão grande para enten­der os sig­nifi­ca­dos da cidade que Pamuk dedi­cou um capí­tu­lo inteiro para esmi­uçar as mais difer­entes acepções para o ter­mo. Essa ‘tris­teza’ reflete uma rup­tura, um far­do cul­tur­al enorme, uma exper­iên­cia espir­i­tu­al que ultra­pas­sa o entendi­men­to e se trans­for­ma em poe­sia diária de quem res­pi­ra o ar do Bós­foro e cam­in­ha pelas ruas de casas de madeira queimadas, anti­gas mora­dias de paxás e por vielas que divi­dem lugar com ciprestes e cemitérios.

Pintura de Melling, do livro “Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore”

Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

Istam­bul – Memória e Cidade parece ser uma ten­ta­ti­va de retorno e redenção de Orhan Pamuk, já que o próprio autor viveu momen­tos de con­fli­to e negação com relação à cidade. Seja em meio aos momen­tos da infân­cia, brigas de família, iní­cio da vida esco­lar e, anos mais tarde, entra­da desan­i­ma­da na fac­ul­dade de Arquite­tu­ra, Pamuk mostra o lado que per­tence aos ver­dadeiros nativos da cidade em pre­to e bran­co. No meio de tan­tas lem­branças, há tam­bém os estu­dos que o autor real­i­zou para escr­ev­er o livro, o qual­i­fi­ca­do con­hec­i­men­to históri­co que ele apre­sen­ta, a sua desen­f­rea­da bus­ca por arquiv­os públi­cos e tam­bém a par­til­ha de sen­ti­men­tos que mar­caram a sua vida, como a dolorosa sep­a­ração do ambi­ente famil­iar, quan­do começou a fre­quen­tar o colé­gio; sua neces­si­dade de expressão por meio de desen­hos e pin­turas e o inesquecív­el caso de amor que ele teve com uma garo­ta a quem dele­gou um pseudôn­i­mo curioso (Rosa Negra). Lamen­tavel­mente para o autor – e isso fica bem claro no decor­rer desse capí­tu­lo -, o romance não dá cer­to e a cul­pa recai em cima da opção de Pamuk pela arte.

Barış Akarsu

Barış Akar­su

Min­ha exper­iên­cia com a leitu­ra desse livro foi bas­tante pos­i­ti­va, mas pre­ciso men­cionar a vagarosi­dade na sequên­cia de alguns capí­tu­los, que exigem grande esforço de con­cen­tração por parte do leitor, e tam­bém a lacu­na que sen­ti por não perce­ber nen­hum capí­tu­lo ou comen­tário mais detal­ha­do sobre a pro­dução musi­cal de Istam­bul, tão rica e diver­si­fi­ca­da. A Turquia tem pro­duzi­do os mais vari­a­dos tipos de músi­ca, e eu não pode­ria deixar de enfa­ti­zar o instru­men­tista Hüs­nü Şen­lendiri­ci que, a propósi­to, tem uma com­posição belís­si­ma chama­da  İst­anb­ul İst­anb­ul Olalı, e o fab­u­loso can­tor e per­former Barış Akar­su, vence­dor da série tele­vi­si­va Akade­mi Türkiye (Acad­e­mia Tur­ca), em 2004, com a inter­pre­tação prodi­giosa da músi­ca Islak Islak. Barış tam­bém atu­ou na série Yalancı Yarim (algo como “meu amante men­tiroso” ou ain­da “metade men­tiroso”), atingin­do um suces­so estron­doso até sua morte, aos 28 anos, viti­ma­do por um aci­dente de carro.

Pintura de Melling, do livro “Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore”

Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

Como entu­si­as­ta da pro­dução cul­tur­al da Turquia, e sem esque­cer da importân­cia de Pamuk para a lit­er­atu­ra tur­ca como o autor mais ven­di­do do país, com obras traduzi­das para mais de sessen­ta lín­guas, recomen­do a leitu­ra de Istam­bul – Memória e Cidade porque, muito mais do que uma viagem ao pas­sa­do, essa obra con­strói pontes que, ao invés de dis­tan­cia­rem, aproximam.


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